quinta-feira, 17 de julho de 2008

ZEUS




Que ninhada! Certamente fora desmamado cedo, o que justifica sua inquietude. Subtraído do seio da família, sem suas tetas e designado como presente para nosso David, amigo do dono, patinou em piso liso, o que afetou seus trens. Veio de Recife a bordo de um caminhão, por amigos. Chegou bonito a nos enfeitiçar, conquistando logo a todos.
Borrou e urinou o piso da sala, aos berros meus e às gargalhadas dos chorões de hoje... Percebi que chegara o “cara”, o teimoso, o debochado, o esculhambado. Chegou a mim, por sorte mais tolerante eu. – Tempos idos o teria jogado fora pelo rabo-. Tenho um neto, filhos e mulher de corações moles. Fui suportando e, de tantas concessões, sentiu-se quase gente.
Passou a fazer cocô e xixi em tudo que era lugar, latir fora de hora e derrubar tudo. Malinação. Entrava na piscina dos pequenos e depois sacudia-se próximo a nós, só pra sacanear. Por seu porte quase grande causava terror entre as crianças não contumazes, mas adorava especialmente a elas, como que tentando conquistá-las.
Ficou corpulento, gordão, - culpa de Fátima- por tantos mimos e excessos no prato. Por uns tempos gritou com os trens artríticos, ainda jovem, quando foi desenganado pelos veterinários. Tratei-o com corticosteróide e tudo. Ficou bom! Gozei de prestígio na família, até a segunda crise de hoje, dois anos depois. Por vezes, reclamava com ele como a um filho: Isso sim, isso não, saia, volte, largue...! Por incrível que pareça, tinha o senso de responsabilidade de quem ama, pois à noite, ao chegarmos, corria em torno da casa, como avisando-nos que tudo estava bem, fiel que era. Agia assim por cada um que seu faro e seus olhos registrassem como seus, apesar de sua índole mansa.

Era um teimoso, sem limites. Um cachorro de um olhar tão pidão...
Esparramava-se no piso frio das varandas, onde gostava de ficar e olhava para mim um olho de cada vez, querendo adivinhar o meu humor. Foi criado solto como em batina de padre. Era formoso, mas morreu donzelo, o que assino como causa mortis, posto que não encontramos uma fêmea disponível da mesma raça, visando uma linhagem magnífica, e contrariamos a Darwin, negando-lhe o cheirinho de qualquer cadela passante. De tão bom e inquieto, coube a mim a árdua tarefa de canalizar seus ímpetos e, nesse momento, quem mais chora sou eu. Carimbou a vida da gente, imprimindo sua pata no último chão de cimento novo, antes de partir para a saudade. Era um labrador. Preto.

Crato (Ce), 29 de setembro de 2007
Dr. João Marni de Figueiredo.

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